Por Vitor Ahagon
Depois de uma noite de merda, em que angústia e frustração vagueavam meus sonhos numa proporção muito maior do que o alívio, acordo e faço meu ritual para caminhar ao abatedouro, que chamo de trabalho. Minha bicicleta está com o pneu furado e, por isso, tenho de pegar o ônibus. No caminho de casa para o abatedouro, um trânsito incomum… quando me dou conta, “mas que porra é essa?!” Vejo que uma das faixas da rua está bloqueada. Na calçada uma tenda com algumas cadeiras de praia e 4 pessoas com cartazes pedindo intervenção militar. No lado oposto, o quartel e uma dezena de flores amarelas no pé do muro. Quando o ônibus finalmente consegue atravessar esse corredor da morte, mais à frente vejo uma loja de armas e outra de utensílios de paintball ou coisa parecida.
Desde então, todos os dias, transcorridas umas tantas semanas, quando saía de casa para o abatedouro e do abatedouro para casa, via essa cena. Mas com um diferencial: a cada dia que passava, a infraestrutura crescia, assim como o número de pessoas embaixo dela. Numa dessas vezes em que passei por lá, vi uma senhora — devia ter lá seus 50 e tantos anos — e um jovem — sei lá, não mais que 19 anos —, batendo um papo sentados na cadeira de praia, em plena segunda-feira, às 6:30 da manhã. O que se passava ali era uma conversa do que estavam fazendo, porque estavam ali e o que queriam com aquilo. Foi aí que elaborei uma pergunta muito parecida àquela feita por Manolo em Delírios e delirantes em Salvador: “Por que raios alguém se sujeitaria a passar quase um mês fora de casa, acompanhado por completos desconhecidos, sob um sol inclemente acompanhado por surtos de chuva torrencial?”
Assim como Manolo, reconheço que seria impossível essas pessoas permanecerem ali sem financiamento e acredito que o poder institucional e a mídia comercial já vêm cobrindo essa questão. Sem a grana de ruralistas e fazendeiros do agronegócio, comerciantes e profissionais liberais — tais como médicos, sim, essa categoria, mesmo depois da pandemia —, empresários e servidores públicos, as pessoas em frente aos quartéis e aquelas que bloquearam e continuam bloqueando as rodovias, nunca conseguiriam aguentar por muito tempo. Mas mesmo com esse financiamento, o que faz essa gente ficar tanto tempo mobilizada? Acertadamente, Manolo fala em fanatismo religioso e obscurantismo político, mas acredito que também podemos refletir sobre a dimensão subjetiva do fanatismo e obscurantismo e, para tanto, vou contar uma historinha…
* * *
Estava na casa da minha avó. Conversa vai, conversa vem e não sei como chegamos nesse ponto, mas estávamos falando sobre as reformas urbanas de Haussmann em Paris e de Pereira Passos no Rio de Janeiro. Um pouco mais de conversa e chegamos na questão de como homens, principalmente brancos de classe média, apesar de amedrontados com os pobres, podem usar a cidade sem sofrer quase nenhuma violência. Até que, neste momento, ouvimos uma terceira voz que atravessou a sala, mas não foi somente a sala que foi atravessada, senão nós mesmos:
— Sim, por isso estava pensando em comprar uma arma!
— Como assim?
— Não… mas vou fazer aulas de tiro!
Quem falara era o sujeito do medo. Foi quando percebi como o medo é uma das estratégias mais eficazes de cooptação utilizadas pelo fascismo e esse medo me fez sentir medo também. Medo do medo do outro. Mas de onde vem esse medo, como ele nasce, cresce e se desenvolve? É muito difícil criar alguma explicação que possa servir para todas as circunstâncias. Há tempos renunciei à utopia iluminista da universalidade. A única coisa que me resta é entender esse caso específico, desse medo particular, mas que pode também ser o medo de outros.
Enfim, esse medo nasceu da perda… perda de um dos nós que atava uma trama de relações. Quando esse nó morreu e foi desfeito, nenhum outro foi feito em seu lugar. Por mais que um e outro nó, que estava ao lado daquele desfeito, buscasse suprir a tensão que ele segurava, não conseguiam. Com o tempo, percebemos que não havia como substituí-lo, na verdade, não era desejável, pois o vazio que o nó deixou marcava sua presença pela ausência, e assim era uma forma de lembrar das suas amarrações. Mas nem todos pensaram assim. O sujeito do medo via nesse vazio apenas a falta e não a presença simbólica e, por isso, foi jogado no abismo da angústia e solidão, lugar onde todos nós estávamos com a perda do nó, num momento em que foi difícil ser suporte para o sujeito do medo, pois nós mesmos também precisávamos de um.
Assim, veio a fratura, e como quando quebramos o braço precisamos de uma tala para imobilizá-lo, foi necessário um medicamento para interromper a onda de tristeza e melancolia, afinal, se tivermos de lembrar toda vez que precisamos respirar, a própria vida não continua. Mas com a medicação veio o torpor e por um longo tempo aquele vazio, aquela falta, foi soterrada, mas se manteve ali, não foi elaborada e ressignificada.
Quando não era mais necessário o remédio, veio a pandemia e mais uma vez veio a perda. Felizmente, não uma perda de outros nós, mas a perda do contato, da experiência, das visitas e tudo virou tela e isolamento. Com o isolamento, restamos apenas nós mesmos, e tivemos de enfrentar nossos demônios, mas o sujeito do medo, não querendo enfrentar a angústia do vazio — porque talvez fosse insuportável —, recorreu às redes sociais para criar conexões. Como é de uma geração que se fez adulta sem a internet, o sujeito do medo navegou as redes sem medo, circulando por grupos e comunidades que o acolheram com o ódio.
Nesse momento, pude perceber como o ódio é um elemento de união, um sentimento agregador. O que o sujeito do medo procurava, de toda forma, era cessar o medo. Medo de ficar sozinho, medo do abandono e, contra esse medo, adveio o ódio compartilhado. O ódio socializado. O ódio que vincula. O ódio do Outro. Por isso, esse mesmo ódio também desagregou, porque ele afastou todos aqueles que dele não compartilhavam.
Esse ódio não é de hoje, mas é histórico. Nasceu dos estupros que sofreram o Litoral da Caravela, a Senzala da Casa Grande. O próprio sujeito do medo votava 11 com força e achava que Paulo Maluf era a melhor opção. Quem não se lembra da célebre frase: estupra mas não mata?! A estrutura do ódio nos abraça, está por toda a parte e nos contamina de formas que nem temos consciência. Não que todo ódio seja em si algo negativo, muito pelo contrário, é necessário odiar o que te oprime para conseguir se emancipar, esse odiar vem da indignação, mas o ódio a que me refiro, é aquele que brota do medo.
São destas matérias que são feitas aquelas pessoas em frente aos quartéis e nos bloqueios das rodovias: de medo e ódio. Medo e ódio do gay, da mulher, do comunista, do preto, da lésbica, do pobre, do anarquista, da travesti, do venezuelano… enfim, de todos aqueles que não são eles. Quem são eles? São medrosos, narcisistas, solitários, frustrados e infelizes. Mas nem só de medo e ódio vive o sujeito do medo, pois ele precisa de um guia, de um chefe, de um líder. Por isso, o ódio e o medo desse sujeito estão subordinados pelo tesão ao líder. Na medida em que o sujeito do medo não fez o luto, necessário, do nó desatado, o substituiu pelo Duce, pelo Führer.
* * *
Mais uma manhã e a gente segue repetindo o mantra: o fascismo não se derrota nas urnas, mas nas ruas. Eles ainda estão lá, com medo, ódio e tesão. A questão que fica é: será que irão suportar o desaparecimento do líder, elaborar o luto e simbolizá-lo? Se tomarmos aquela cena da senhora e o jovem conversando, vemos uma geração transmitindo a outra algumas experiências. É assim que a juventude consegue ter o referencial simbólico e mitológico do líder, ao mesmo tempo que consegue ressignificar sua imagem para atualizá-la a novas circunstâncias. Portanto, o fascismo não se derrota apenas nas urnas e nas ruas, mas também na disputa dos afetos, e nessa luta estamos dando apenas nossos primeiros passos.
Em destaque, Protótipo, de Marnika Cherelle (2012). A outra ilustração, sem título, é da autoria de Barbosa Prince (2015).
pobre “utopia iluminista da universalidade”! Atacada por tantos e por tantos acadêmicos, da esquerda à direita. Sem qualquer direito à defesa. Mas lá no Irã, mulheres teimam por esse universalismo, talvez mais uma utopia. Mas como dizia Oscar Wiilde, um mapa-mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado.
O chistoso Oscar não morava num mapa-mundi, hélas…
A “utopia iluminista da universalidade” não passa de um conveniente eufemismo, seu nome próprio é Capitalismo.
Mas os coringas piadistas de si mesmos tem uma fé inabalável nas conquistas e avanços supostamente proporcionados pelo Capital, como se a única abundância gerada por este não fosse a da miséria, a da exclusão e a da extinção em massa.
A condição de vida das mulheres no Irã não é, em última instância, diferente qualitativamente das pretas pobres nas periferias do Brasil, ou das mulheres Indianas das castas inferiores.
O Capitalismo não trará qualquer solução nem para esta situação nem para quaisquer outras, ao contrário apenas vai agravá-las e prolongá-las.
A única luz acendida pelo Iluminismo foi revelar como a burguesia ascende desfraldando a insígnia do universalismo, para logo assim ao se consolidar como classe dominante deixar claro seus interesses puramente particulares.
Sem Utopia um mapa-mundi é inútil, pois ela é a terra para qual a Humanidade se dirige. Se há algum progresso, ele se dá na concretização das utopias. E isto é impossível de ser alcançado com piadas de mau-gosto.
PS:
Para não ficar por completo fora do assunto principal do artigo, o Fascismo precisa ser considerado como inevitável resultado do Desejo que, ao ser bloqueado de processar a Vida, opera como ode ao aniquilamento: “Viva a Morte!”.
Sendo a forma pura e brutal do Capitalismo, o Fascismo desmasca a este como um modo não de produção mas sim de destruição.
E assim se chega a desejar a repressão e a tortura não apenas para os outros, também para si mesmo.
Medo e insegurança são chave para entender o fascismo como corrente ou movimento de massa.
A essa altura de difusão e desenvolvimento do neofascismo brasileiro a todas as classes sociais, é difícil encontrar uma fonte de medo “universal”, que consiga explicar a adesão de inúmeros indivíduos com histórias de vida diferentes e de classes sociais diferentes. A essa altura já se formou um movimento e inimigos imaginários em que qualquer um pode direcionar suas frustrações de vida, suas inseguranças e medos, que podem ser as mais variadas na origem.
É preciso distinguir uma fase de difusão e expansão do movimento fascista na sociedade, na qual os mecanismos há muito estudados de psicologia social e de psicologia de massas entram em ação. Esses mecanismos fazem o fascismo atravessar essas diferenças individuais e sociais, juntando indivíduos aparentemente díspares nesse mesmo movimento. Porém, deve-se buscar uma fase de gênese desse neofascismo. Em qual grupo social ele se originou, a partir de qual grupo social se irradiou. Aí talvez seja possível encontrar algo em comum, medo em comum nesse grupo social.
Olhe para o trabalho e a economia. Algo que a direita mas também a esquerda institucional se esforça para esconder: o que as pessoas vivem no trabalho, na luta pela sobrevivência econômica? Guy Standing já alertava mais de dez anos atrás que a insegurança laboral do precariado tendia a alimentar movimentos fascistas. No fascismo histórico o medo de queda social da classe média alimentava o fascismo. Mas como espécie de defesa psíquica contra esse rebaixamento, a retórica se direcionava a questões não econômicas.
Todos nós carregamos medos e inseguranças por toda a vida. A questão é, por que em determinados momentos eles acabam direcionados a alimentar um movimento fascista? O que há no contexto social, econômico, de diferente?
A base é material, está no trabalho e na economia, como esteve no fascismo histórico.